quinta-feira, 23 de abril de 2009

Imperdoável

Quando chegou em casa estranhou o portão aberto. Assustou-se ao constatar a porta destrancada. Entrou cautelosamente. Havia gavetas reviradas, na cozinha uma porta de armário entreaberta. Ouviu ruído no quarto. Pegou sem fazer barulho o pedestal de um abajur, uma peça de madeira roliça e pesada. Foi abrindo a porta do seu quarto devagar, o coração aos pulos. Um medo voraz a arrancar-lhe suor das têmporas.

_Maurício! O que você está fazendo aqui?

_Você é louca. Encontro você na minha casa mexendo na minha gaveta de cuecas, e é você quem quer saber o que faço aqui?

A mulher não sabia o que dizer. Ficou parada olhando pra ele com uma expressão débil no rosto, tentando desesperadamente formular alguma defesa coerente. Não era possível. Não havia nenhum bom senso no que estava fazendo. Optou então pela verdade.

_Tem razão, devo parecer uma maluca, fuçando a sua roupa íntima. Estou procurando uma calcinha esquecida, uma escova de dente a mais no seu banheiro, um número de telefone, uma comida que você não goste de comer na cozinha. Algo que comprove o que me disseram. Eu sei que é insano, mas eu queria muito saber se você está trepando mesmo com alguma vagabunda.

_Não lhe ocorre que talvez eu esteja trepando com uma mulher decente, só pra variar? Não julgue os outros por você Vanessa.

_ Vou ouvir isso e aceitar, por que entendo a sua mágoa. Não foi muito legal da minha parte me envolver com seu irmão. Mas isso não me impede de continuar te amando.

Os olhos dela tornaram-se tão envergonhados quando ela disse isso, que Maurício sentiu vontade de abraça-la, de dizer que não tem importância, que ele também não consegue deixar de lhe querer bem. Mas ao invés disso ele preferiu agir como homem, segurou a onda. " Maurício tem coisas que são imperdoáveis" repetia a si mesmo em seu interior como um mantra.

_Não me importo com o que sente ou deixa de sentir. Mas se saber da minha vida sexual é tão importante para você a ponto de fazê-la perder completamente a noção do ridículo e invadir minha casa, acho que não custa nada pra mim te dar essa informação. O que você quer saber?


_ Você tá namorando?

_ To.

_Como ela é?

_ Maravilhosa, bonita, inteligente, gostosa...

_Já entendi. Você a ama?

_Sim.

_Da mesma forma intensa que me amou?

_Muito mais.

_Mentiroso.

Ela ficou calada. Olhou pra ele temerosa de encontrar verdade no que ele afirmava. Não achou. Ela sorriu. Um riso limpo de criança quando convence alguém a lhe dar algo que deseja. Maurício intuitivamente desviou os olhos. Sabia que eles o delatariam.

Vanessa dobrou a cueca que tinha nas mãos no momento do flagrante. Olhou a gaveta desorganizada balançou a cabeça desaprovando o que via.
_Se ela fosse tão maravilhosa já tinha dado jeito nessa gaveta, a tua cozinha tá um nojo, o banheiro tá lotado de roupa suja...
_Vanessa ela é minha namorada, não uma faxineira. E depois o tempo que ela passa aqui nós fazemos coisas muito mais interessantes e prazerosas do que limpar e organizar.


_Tá certo Maurício. Você está feliz. Eu me alegro.
Ela alisou o vestido com as mãos em um gesto muito seu, que ele conhecia e achava feminino e sedutor. Olhava para ela se esforçando para conter o desejo de aperta-la em seu abraço. De beijar ardentemente aqueles lábios carnudos, sentir na pele a maciez sedosa da sua longa cabeleira vermelha
_É só Vanessa? Tá satisfeita a sua curiosidade mórbida?
_ Sim. Eu vou embora.
Ela se aproximou dele, deu um beijo em sua face e partiu.

No dia seguinte quando chegou em casa sentiu ao abrir a porta um cheiro agradável. A casa estava impecavelmente limpa. Foi para o quarto. Conforme suspeitou, encontrou as cuecas arrumadas na gaveta. As roupas lavadas e passadas organizadas no armario, lençóis limpos e olorosos esticados em cima de sua cama. Na geladeira a sobremesa favorita. Em cima da mesa da cozinha um papel escrito com a grafia dela:
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não. Quero é uma verdade inventada.
Clarice Lispector"

Ele segurou nas mãos o bilhete com cuidado,como se fosse algo frágil. "Maurício, Maurício, seja homem, há coisas que são imperdoáveis". Disse a si na tentativa ineficaz de convencer-se.

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