quarta-feira, 6 de novembro de 2013

VERÔNICA



























Verônica acordou. Olhou o homem adormecido ao seu lado.
Saiu da cama com movimentos contidos. Foi para a cozinha, colocou água no fogo para fazer o café. Foi ao banheiro, encarou-se ao espelho por um instante depois de lavar o rosto. Reparou nos olhos opacos, duas esferas escuras na face inexpressiva. O som quase inaudível da água fervente fez com que voltasse a cozinha.
Envolveu a mão em um pano de prato, verteu a água adoçada sobre o pó de café depositado ao fundo de um coador de pano. O vapor oloroso espalhou-se. Colocou a bebida em uma xícara que foi levar ao homem recém-acordado.
Trocou de roupa, arrumou o cabelo. Conferiu se a bolsa continha os pertences que achava que iria precisar no decorrer do dia. Encheu o compartimento da gaiola do canário com alpiste e saiu.
Caminhou duas quadras até o ponto de ônibus. Entrou com dificuldade  no transporte  lotado que chegou alguns minutos atrasado. O esbarrão inevitável dos corpos espremidos, os olhares hostis desenhados nas faces cerradas, a posição desconfortável dos braços erguidos na tentativa vã de segurar-se, a lentidão do trânsito saturado, transmutavam o trajeto até o trabalho em sofrimento.
No trabalho, as horas passavam iguais.  Ganhava por peça, possuía metas de produtividade para manter-se na empresa. Trabalhava sem desviar o olhar da linha tracejada que a máquina imprimia sobre o tecido, sem parar, sem pensar. Mais máquina que gente, inserida na engrenagem opressora que igualava cada fração do tempo que passava ali.
Verônica por vezes, nessas horas iguais, sentia um aperto frio no centro do estômago. Nada fazia para sanar a dor, mantinha o ritmo acelerado do pedal da máquina de costura industrial.
Nunca soube dizer por que, no meio daquela tarde, resolveu tirar os pés do pedal, retirar as mãos do tecido que guiava habilmente, levantar-se e sair, deixando atrás de si as indagações das colegas de trabalho. Não disse  palavra alguma, apenas moveu-se ligeira para a saída como se estivesse em fuga.
A principio não se dirigia a lugar nenhum. Seus pensamentos eram confusos e desconexos. Lembrava-se de coisas que havia ouvido, comerciais de tv, trechos de músicas. Repentinamente, pensou no canário branco do marido. Já não mais caminhava sem rumo, ia para casa.
Pensou em tomar um ônibus, rejeitou a ideia, preferiu andar.
Chegou em casa, com os pés deformados por imensas bolhas transparentes. Tirou os sapatos. Despiu-se. Cada peça de roupa que tirava do corpo acalorado era um refrigério prazeroso.
Verônica ouviu o pássaro. O canto do canário preso parecia para ela, um objeto agudo a penetrar-lhe as carnes. Deslocou-se até a área de serviço do apartamento onde estava pendurada a gaiola, abriu a janela e libertou a ave.
Ficou olhando o pássaro ganhar com suas asas frágeis o infinito azul que se podia ver além dos prédios vizinhos. Quando não mais o viu, arrastou o corpo cansado até a sala e nua como estava deitou-se na poltrona.





sexta-feira, 1 de novembro de 2013

FÁBRICA DE GENTE



                                                                                                                        Contaram para mim que existia uma gigantesca fábrica de gente e que na linha de montagem espremiam a matéria prima das pessoas  em  moldes rígidos de medo. O problema desses moldes é que eles deformavam o material humano, tanto que poderiam até imobilizar a peça inutilizando o seu uso. Uma solução para isso foi envolver as peças em uma malha de ilusões e desejos feita de mentiras. Funcionou muito bem essa combinação de medo e mentira, posto que, os moldes rígidos de medo impediam que a essência  humana  vertesse (algo absolutamente indesejado devido a natureza altamente contaminante e instável desse material) e a malha de ilusões e desejos protegiam a peça das deformações e paralisias que o medo poderia causar.  Tudo muito engenhoso e eficaz. A mim, no entanto, surpreendeu o fato de conseguirem encaixotar as peças ignorando o fato de que pessoas não cabem em caixas.

 Elas não cabem em caixas porque sequer cabem dentro dos próprios corpos, grande parte do seu conteúdo emana universo afora em forma de sentimentos e pensamentos. Isso realmente era um fator que podia inviabilizar toda a produção, pois os donos da fábrica sabiam que embora pensamentos e sentimentos fossem feitos de uma matéria invisível, delicada e evanescente, as peças eram muito sensíveis a eles.  Sabiam que pessoas podiam ser transformadas para sempre a partir de uma emoção ou idéia, a mudança irremediável ocorria mais intensa e rapidamente quando as peças ficavam expostas a sentimentos e pensamentos unidos em um único elemento. O mais seguro, concluíram então, seria alcançar um processo de otimização na produção que extirpasse em definitivo a capacidade de sentir e pensar.
 Até tentaram fazer isso, mas já nos primeiros testes notaram que ao erradicar por completo  tais capacidades as peças ficavam inaptas para desempenhar as funções básicas que justificavam a  fabricação de gente: a capacidade de gerar riquezas aos seus donos através de infinitas funções secundárias que eram capazes de desempenhar e  a função primordial de alimentar através de hábitos de consumo todo o sistema de produção, o que também era uma forma de gerar capital.
Logo os fabricantes entenderam que não seria possível acabar com toda a capacidade de sentir e pensar das peças, pois, o desempenho das funções básicas estava na dependência do funcionamento de uma engrenagem cujos rolamentos que a faziam girar eram compostos por sensações e idéias.  A própria malha de desejo assim como os moldes de medo,  tão úteis à produção de gente, também eram feitos de emoções. Por isso para a segurança e lucratividade da fábrica  fazia-se necessário a utilização de  métodos  eficientes para controlar e direcionar os sentimentos e os pensamentos das peças ao encontro do melhor desempenho de suas funções.  
 Para sanar o efeito indesejável que a capacidade de pensar e sentir poderia gerar nas pessoas, os fabricantes desenvolveram alguns aparelhos para exercer o controle e direcionamento dessas faculdades. Eram aparelhos grandes e complexos  interligados em um sistema, trabalhando constantemente, fazendo com que  alcançassem  seus objetivos na quase totalidade das peças.
As pessoas enquanto iam sendo produzidas eram expostas a esses aparelhos. Havia um, ao qual elas eram enviadas para lá ainda pequenas durante muitas horas do seu dia no decorrer dos anos todos que levava para concluir o processo de produção. Esse aparelho era formado por prédios espalhados por todos os lugares. Dentro desses prédios as peças em formação eram armazenadas em  salas de controle e construção de pensamento, onde pessoas que já haviam saído da fabrica exerciam a função de direcionar o pensamento das pecinhas. Esse aparelho servia ainda para formatar o pensamento com conhecimentos úteis ao desempenho de diversas funções, o que habilitava a peça para o seu posterior uso. 
Um outro aparelho,  exercia controle através da fixação de crenças diversas que, basicamente, serviam para  cristalizar nas pessoas uma idéia de medo e punição eterna causadas por poderosos entes invisíveis, e segregar as peças em grupos. O mecanismo desse aparelho a  medida que construía o entendimento que o seu grupo era melhor e que podiam contar com ajuda desses seres invisíveis desde que obedecessem suas ordens iria desenvolvendo justificativas que validavam ações contrárias a empatia presente na matéria prima das peças, isso evitava o surgimento de idéias e sentimentos perigosos de igualdade  de valores e identificação afetiva entre as peças.
Outro ainda, extremamente eficaz, era formado por uma grande quantidade de máquinas   que acompanhavam as pessoas o tempo todo,  eles serviam para distrair, estimular o consumo e transmitir as informações manipuladas que seriam utilizadas na construção e manutenção da rede de ilusões e das molduras de medo.
 Esse aparelho como se multiplicava em muitos e contribuía em diversos aspectos do processo produtivo da fábrica foi se tornando cada vez mais presente e poderoso, tanto que em dado momento toda a produção da fábrica dependia do funcionamento das maquinas que o constituíam. E, foi por causa dessa dependência que a fabrica entrou em colapso e encerrou suas atividades.
Eu que nasci em um tempo outro, um tempo onde fábricas de gente não existem mais, ouvia na infância, muito atenta, minha avó contar a história de como foi que as pessoas deixaram de ser fabricadas e conquistaram o direito de construírem suas vidas plenas de liberdade e afeto. Muitas foram às vezes em que ela enquanto acariciava meu cabelo com suas mãos enrugadas e mornas me falou sobre a fabricação de gente.