“Mas isso
não tem cabimento, eu não bati em você...”
“Não importa.”
“Volta pra casa.”
“Não. Vou voltar mas é pro trabalho.”
“Amélia...”
“Não importa.”
“Volta pra casa.”
“Não. Vou voltar mas é pro trabalho.”
“Amélia...”
Evitei os
olhos dele dando as costas e voltando pro hotel. Não me importa a voz sofrida,
não me afetam as juras de amor ou o rosto cavado pelo peso do arrependimento.
Não perco mais meu tempo nem pra explicar. Já sofri muito em unha de homem pra
saber que quem considera bater alternativa, caminha da ameaça pra ofensa, da
ofensa pro tapa, do tapa pras surras... Aí o fim é um só: Morte. Ou a morte
física, flores enfeitando um caixão e lágrimas lavando a dor, ou a morte de um
melhor da gente. Digo isso por que já morri uma vez.
Já levei
tapa, soco, empurrões, já fui sacudida pelo pescoço, chutada, jogada no chão...
Não acontecia sempre. O de sempre eram o ciúme, as críticas, cobranças, a
insatisfação constantemente manifesta, a ausência do carinho tantas vezes esperado.
Talvez Marcos não seja como ele. Tanto faz. Não vou correr o risco de ficar
pra,e descobrir que são da mesma laia ou não.
Demorei uns
tantos anos pra conseguir sair da outra vez. Era fraca. Ele me fez frágil.
Fortalecer levou tempo. Quem errava era ele e quem sentia vergonha era eu.
Escondia hematomas com maquilagem. Engolia o choro até a garganta doer. Quantas
vezes... O choro amargo vindo num crescente, lágrimas batendo na porta dos
olhos, a vontade de gritar, de sair correndo, de deixar o choro vir. Sair
caudaloso, escorrer pelas bochechas, encharcar a alma. Mas não fazia nada,
tinha gente perto, tinha vergonha.
Náufraga, se
agarrando a qualquer pingo de doçura que flutuasse naquele mar amargo. Quando
quis ir embora ouvi a voz grave dele dizer - enquanto me jogava com violência
no chão - que não iria, por que eu era um monte de lixo, por que eu não tinha
sequer como me alimentar sozinha. Foi nesse dia que comecei a sair. Não engoli
o choro, não maquiei as marcas, não fiquei em silêncio. Vociferei de volta.
“Lixo maior
é você e fica sabendo que a partir de hoje só tô com você por que não tenho
como estar em outro lugar. Eu não te amo. Ouve bem, eu não te amo. Você morreu
pra mim. Não esquece isso! ”
Depois dali,
não houve doçura que me fizesse ficar. Não por ruindade ou rancor. Alguma coisa
me fez imune as ternuras dele. E vieram tantas. Não importava mais. Tudo só
servia pra deixar um gosto ruim no coração. Lembrava do que poderíamos ter sido
e não fomos. Foi a morte daquele trem melhor da gente que falei antes.
Tornei-me
animal ferido.
A mulher que
apanha do marido não chora porque apanhou, chora porque foi ele quem bateu. A
grande dor não é a do corpo sendo açoitado. É a que atravessa a carne e atinge
a alma.
A violência
cedeu lugar ao chamego. O sorriso não suportou tanta dor e foi embora. Eu então
soube que tinha também de ir embora. Não fui como eu quis, no mesmo instante.
Fiquei ainda por um tempo. Feito mariposa encasulada antes de sentir o ar
equilibrar suas asas, eu fiquei.
Mas não
fiquei como antes. Fui procurar emprego, mesmo ouvindo dele que não tinha
estudo, que não iria ganhar o suficiente pra pagar alguém pra fazer as coisas
da casa, que era muito esforço por nada, que se era pra limpar as coisas dos
outros que limpasse as nossas... O casulo tecido com fios de dor me protegeu da
sua fala. Arrumei trabalho. Foi como ele disse, pagavam quase nada por que não
tinha estudo. Mas não demorou muito, outros trabalhos foram aparecendo, até
conseguir o emprego no hotel. Carteira assinada, salário suficiente pra não ser
mais o lixo que não é capaz de se alimentar sozinha. Mesmo assim, ainda não
tinha coragem de ir. Ele parecia mudado. O diabo é que eu também tinha mudado.
Uma noite
depois de trabalhar o dia todo cheguei em casa e encontrei um homem reclamando
da sujeira da cozinha. Senti raiva, mas também senti medo. Arrumei a cozinha
com esmero. Quando tomei banho e fui pra cama descansar, para ele era hora dos
prazeres. Não disse não. Na memória a imagem da noite em que ele chutou móveis,
esmurrou paredes depois de uma negativa minha. O prazer das carícias dele não
apaziguou a tristeza grande que eu sentia. A manhã seguinte chegou cinza,
abafada, parecida com minha alma.
Lá no hotel
uma hóspede viu minha tristeza e puxou conversa. Era Dalva Moura que me
presenteou com seu livro ‘Os Ricos também batem’. Não sou de leitura, prefiro
assistir televisão. A simpática Dalva, mulher importante e educada, me explicou
o que tinha no livro. Era o empurrão que eu precisava. Passei a noite em claro
pensando nas histórias de homens cruéis que Dalva me contou.
Ao raiar o
dia, acordei mais cedo, enfiei umas roupas e sandálias na sacola. Peguei um
lápis e deixei um bilhete ao lado do bule de café.
‘No meu
conto de fadas o príncipe virou sapo. Acorde mais cedo e faça seu café. O lixo
foi embora’.
Pra Marcos,
embora tão mais amoroso que o outro, não me dei o trabalho de escrever bilhete.
Só virei as costas e deixei carinhos e resmungos pra trás. Agora tenho asas, só
fico onde hajam flores perfumadas pra repousar a alma.
Colaboração
João Rios Mendes