Verônica
acordou. Olhou o homem adormecido ao seu lado.
Saiu
da cama com movimentos contidos. Foi para a cozinha, colocou água no fogo para
fazer o café. Foi ao banheiro, encarou-se ao espelho por um instante depois de
lavar o rosto. Reparou nos olhos opacos, duas esferas escuras na face
inexpressiva. O som quase inaudível da água fervente fez com que voltasse a
cozinha.
Envolveu
a mão em um pano de prato, verteu a água adoçada sobre o pó de café depositado
ao fundo de um coador de pano. O vapor oloroso espalhou-se. Colocou a bebida em
uma xícara que foi levar ao homem recém-acordado.
Trocou
de roupa, arrumou o cabelo. Conferiu se a bolsa continha os pertences que
achava que iria precisar no decorrer do dia. Encheu o compartimento da gaiola do
canário com alpiste e saiu.
Caminhou
duas quadras até o ponto de ônibus. Entrou com dificuldade no transporte lotado que chegou alguns minutos
atrasado. O esbarrão inevitável dos corpos espremidos, os olhares hostis
desenhados nas faces cerradas, a posição desconfortável dos braços erguidos na
tentativa vã de segurar-se, a lentidão do trânsito saturado, transmutavam o
trajeto até o trabalho em sofrimento.
No trabalho,
as horas passavam iguais. Ganhava por
peça, possuía metas de produtividade para manter-se na empresa. Trabalhava sem
desviar o olhar da linha tracejada que a máquina imprimia sobre o tecido, sem
parar, sem pensar. Mais máquina que gente, inserida na engrenagem opressora que
igualava cada fração do tempo que passava ali.
Verônica
por vezes, nessas horas iguais, sentia um aperto frio no centro do estômago. Nada
fazia para sanar a dor, mantinha o ritmo acelerado do pedal da máquina de
costura industrial.
Nunca
soube dizer por que, no meio daquela tarde, resolveu tirar os pés do pedal,
retirar as mãos do tecido que guiava habilmente, levantar-se e sair, deixando
atrás de si as indagações das colegas de trabalho. Não disse palavra alguma, apenas moveu-se ligeira para a
saída como se estivesse em fuga.
A principio
não se dirigia a lugar nenhum. Seus pensamentos eram confusos e desconexos. Lembrava-se
de coisas que havia ouvido, comerciais de tv, trechos de músicas. Repentinamente,
pensou no canário branco do marido. Já não mais caminhava sem rumo, ia para
casa.
Pensou
em tomar um ônibus, rejeitou a ideia, preferiu andar.
Chegou
em casa, com os pés deformados por imensas bolhas transparentes. Tirou os
sapatos. Despiu-se. Cada peça de roupa que tirava do corpo acalorado era um
refrigério prazeroso.
Verônica
ouviu o pássaro. O canto do canário preso parecia para ela, um objeto agudo a
penetrar-lhe as carnes. Deslocou-se até a área de serviço do apartamento onde
estava pendurada a gaiola, abriu a janela e libertou a ave.
Ficou
olhando o pássaro ganhar com suas asas frágeis o infinito azul que se podia ver
além dos prédios vizinhos. Quando não mais o viu, arrastou o corpo cansado até
a sala e nua como estava deitou-se na poltrona.