“Ela também”
Ouvi minha mãe
dizendo àquela desconhecida da loja. A mulher deitou em mim uns olhos de pena.
Só queria me esconder. Era como se a vergonha sentida pelo que acontecia
estivesse sendo amplificada. A mulher da loja antes de sairmos me presenteou
com uma boneca. O corpo de lã colorida, a cabeça , as mãos e os pés de
porcelana.
Segurei a boneca sem agradecer, os olhos fixos nos
meus pés. Pegamos o ônibus. Em casa, que não era nossa casa, mas a casa dele,
peguei um martelo e bati com força na cabeça, mãos e pés da boneca até que
virassem pó. Fiquei olhando a poeira branca. Desejei que fosse ele. Desejei que
fosse eu.
Olhando pra
trás e pra dentro, agora, do ponto onde me encontro, é perturbador perceber
como minha memória é só um amontoado de lacunas que se sucedem uma após a outra
com parcos fragmentos nítidos de lembrança. A poeira branca da porcelana moída
pela violência das marteladas é um desses fragmentos. O branco da hóstia
esmagada na sola do meu sapato também.
Lembro da
homilia do padre naquela missa. Lembro dele afirmando que Deus ama a todos, e
que ele tem um plano para nossas vidas, que os sofrimentos são coisas que
devemos aceitar. Que embora não pareça ele está cuidando de nós. Isso não
trouxe consolo. Quando a missa terminasse iríamos almoçar na casa dele. Mesmo
depois de todos saberem o que ele fazia. Ele iria se esfregar em mim, tocar meu
corpo, sussurrar no meu ouvido que eu era sua puta, que não adiantava olhar
feio, nem contar pra ninguém, que ninguém ligava por que eu era só uma puta.
Quando o ministro
da eucaristia depositou a hóstia nas minhas mãos não a coloquei na boca. Não
queria comungar de um deus omisso. De volta ao meu lugar, em pé, no fundo da
igreja lotada joguei a massa de trigo que os crentes chamam de deus no chão e a
esmaguei com o pé, enquanto falava em silêncio com toda a força do meu coração
de criança:
“Não gosto de
você e você não gosta de mim, você não cuida de mim. Não cuida das pessoas que
sofrem. Você é só um deus mentiroso e
estou cansada das suas mentiras.”
Não sei situar
no tempo se o pedido do meu pai para eu perdoar ele, foi antes ou depois de eu esmagar deus com a sola do meu sapato.
Lembro que era um dia frio, estávamos andando.
“Eu tenho ódio
do seu pai... Não quero mais ir na casa dele.”
“Perdoa ele.”
Ele não
perguntou os motivos que me levavam a sentir ódio, nem respeitou minha vontade
de não ir mais a casa do vô. Meu pai era tão omisso quanto deus.
Na véspera do
dia dos pais desse ano, trabalhando na gincana da escola via os pais brincando
com seus filhos. As risadas fartas, os olhares amorosos. Tentei lembrar de
alguma brincadeira com meu pai, algum instante, algum riso... Lacunas.
Um vazio
espalhado por dentro. Nem raiva, nem pesar, nem esperança. Só vazio maciço,
agigantado.