terça-feira, 18 de outubro de 2016

Lacunas

“Ela também”
Ouvi minha mãe dizendo àquela desconhecida da loja. A mulher deitou em mim uns olhos de pena. Só queria me esconder. Era como se a vergonha sentida pelo que acontecia estivesse sendo amplificada. A mulher da loja antes de sairmos me presenteou com uma boneca. O corpo de lã colorida, a cabeça , as mãos e os pés de porcelana.

Segurei  a boneca sem agradecer, os olhos fixos nos meus pés. Pegamos o ônibus. Em casa, que não era nossa casa, mas a casa dele, peguei um martelo e bati com força na cabeça, mãos e pés da boneca até que virassem pó. Fiquei olhando a poeira branca. Desejei que fosse ele. Desejei que fosse eu.
Olhando pra trás e pra dentro, agora, do ponto onde me encontro, é perturbador perceber como minha memória é só um amontoado de lacunas que se sucedem uma após a outra com parcos fragmentos nítidos de lembrança. A poeira branca da porcelana moída pela violência das marteladas é um desses fragmentos. O branco da hóstia esmagada na sola do meu sapato também.
Lembro da homilia do padre naquela missa. Lembro dele afirmando que Deus ama a todos, e que ele tem um plano para nossas vidas, que os sofrimentos são coisas que devemos aceitar. Que embora não pareça ele está cuidando de nós. Isso não trouxe consolo. Quando a missa terminasse iríamos almoçar na casa dele. Mesmo depois de todos saberem o que ele fazia. Ele iria se esfregar em mim, tocar meu corpo, sussurrar no meu ouvido que eu era sua puta, que não adiantava olhar feio, nem contar pra ninguém, que ninguém ligava por que eu era só uma puta.
Quando o ministro da eucaristia depositou a hóstia nas minhas mãos não a coloquei na boca. Não queria comungar de um deus omisso. De volta ao meu lugar, em pé, no fundo da igreja lotada joguei a massa de trigo que os crentes chamam de deus no chão e a esmaguei com o pé, enquanto falava em silêncio com toda a força do meu coração de criança:
“Não gosto de você e você não gosta de mim, você não cuida de mim. Não cuida das pessoas que sofrem.  Você é só um deus mentiroso e estou cansada das suas mentiras.”
Não sei situar no tempo se o pedido do meu pai para eu perdoar ele, foi antes ou depois  de eu esmagar deus com a sola do meu sapato. Lembro que era um dia frio, estávamos andando.
“Eu tenho ódio do seu pai... Não quero mais ir na casa dele.”
“Perdoa ele.”
Ele não perguntou os motivos que me levavam a sentir ódio, nem respeitou minha vontade de não ir mais a casa do vô. Meu pai era tão omisso quanto deus.
Na véspera do dia dos pais desse ano, trabalhando na gincana da escola via os pais brincando com seus filhos. As risadas fartas, os olhares amorosos. Tentei lembrar de alguma brincadeira com meu pai, algum instante, algum riso... Lacunas.
Um vazio espalhado por dentro. Nem raiva, nem pesar, nem esperança. Só vazio maciço, agigantado.


quarta-feira, 4 de maio de 2016

Flores perfumadas pra repousar a alma


“Mas isso não tem cabimento, eu não bati em você...”
“Não importa.”
“Volta pra casa.”
“Não. Vou voltar mas é pro trabalho.”
“Amélia...”
Evitei os olhos dele dando as costas e voltando pro hotel. Não me importa a voz sofrida, não me afetam as juras de amor ou o rosto cavado pelo peso do arrependimento. Não perco mais meu tempo nem pra explicar. Já sofri muito em unha de homem pra saber que quem considera bater alternativa, caminha da ameaça pra ofensa, da ofensa pro tapa, do tapa pras surras... Aí o fim é um só: Morte. Ou a morte física, flores enfeitando um caixão e lágrimas lavando a dor, ou a morte de um melhor da gente. Digo isso por que já morri uma vez.
Já levei tapa, soco, empurrões, já fui sacudida pelo pescoço, chutada, jogada no chão... Não acontecia sempre. O de sempre eram o ciúme, as críticas, cobranças, a insatisfação constantemente manifesta, a ausência do carinho tantas vezes esperado. Talvez Marcos não seja como ele. Tanto faz. Não vou correr o risco de ficar pra,e descobrir que são da mesma laia ou não.
Demorei uns tantos anos pra conseguir sair da outra vez. Era fraca. Ele me fez frágil. Fortalecer levou tempo. Quem errava era ele e quem sentia vergonha era eu. Escondia hematomas com maquilagem. Engolia o choro até a garganta doer. Quantas vezes... O choro amargo vindo num crescente, lágrimas batendo na porta dos olhos, a vontade de gritar, de sair correndo, de deixar o choro vir. Sair caudaloso, escorrer pelas bochechas, encharcar a alma. Mas não fazia nada, tinha gente perto, tinha vergonha.
Náufraga, se agarrando a qualquer pingo de doçura que flutuasse naquele mar amargo. Quando quis ir embora ouvi a voz grave dele dizer - enquanto me jogava com violência no chão - que não iria, por que eu era um monte de lixo, por que eu não tinha sequer como me alimentar sozinha. Foi nesse dia que comecei a sair. Não engoli o choro, não maquiei as marcas, não fiquei em silêncio. Vociferei de volta.
“Lixo maior é você e fica sabendo que a partir de hoje só tô com você por que não tenho como estar em outro lugar. Eu não te amo. Ouve bem, eu não te amo. Você morreu pra mim. Não esquece isso! ”
Depois dali, não houve doçura que me fizesse ficar. Não por ruindade ou rancor. Alguma coisa me fez imune as ternuras dele. E vieram tantas. Não importava mais. Tudo só servia pra deixar um gosto ruim no coração. Lembrava do que poderíamos ter sido e não fomos. Foi a morte daquele trem melhor da gente que falei antes.
Tornei-me animal ferido.
A mulher que apanha do marido não chora porque apanhou, chora porque foi ele quem bateu. A grande dor não é a do corpo sendo açoitado. É a que atravessa a carne e atinge a alma.
A violência cedeu lugar ao chamego. O sorriso não suportou tanta dor e foi embora. Eu então soube que tinha também de ir embora. Não fui como eu quis, no mesmo instante. Fiquei ainda por um tempo. Feito mariposa encasulada antes de sentir o ar equilibrar suas asas, eu fiquei.
Mas não fiquei como antes. Fui procurar emprego, mesmo ouvindo dele que não tinha estudo, que não iria ganhar o suficiente pra pagar alguém pra fazer as coisas da casa, que era muito esforço por nada, que se era pra limpar as coisas dos outros que limpasse as nossas... O casulo tecido com fios de dor me protegeu da sua fala. Arrumei trabalho. Foi como ele disse, pagavam quase nada por que não tinha estudo. Mas não demorou muito, outros trabalhos foram aparecendo, até conseguir o emprego no hotel. Carteira assinada, salário suficiente pra não ser mais o lixo que não é capaz de se alimentar sozinha. Mesmo assim, ainda não tinha coragem de ir. Ele parecia mudado. O diabo é que eu também tinha mudado.
Uma noite depois de trabalhar o dia todo cheguei em casa e encontrei um homem reclamando da sujeira da cozinha. Senti raiva, mas também senti medo. Arrumei a cozinha com esmero. Quando tomei banho e fui pra cama descansar, para ele era hora dos prazeres. Não disse não. Na memória a imagem da noite em que ele chutou móveis, esmurrou paredes depois de uma negativa minha. O prazer das carícias dele não apaziguou a tristeza grande que eu sentia. A manhã seguinte chegou cinza, abafada, parecida com minha alma.
Lá no hotel uma hóspede viu minha tristeza e puxou conversa. Era Dalva Moura que me presenteou com seu livro ‘Os Ricos também batem’. Não sou de leitura, prefiro assistir televisão. A simpática Dalva, mulher importante e educada, me explicou o que tinha no livro. Era o empurrão que eu precisava. Passei a noite em claro pensando nas histórias de homens cruéis que Dalva me contou.
Ao raiar o dia, acordei mais cedo, enfiei umas roupas e sandálias na sacola. Peguei um lápis e deixei um bilhete ao lado do bule de café.
‘No meu conto de fadas o príncipe virou sapo. Acorde mais cedo e faça seu café. O lixo foi embora’.
Pra Marcos, embora tão mais amoroso que o outro, não me dei o trabalho de escrever bilhete. Só virei as costas e deixei carinhos e resmungos pra trás. Agora tenho asas, só fico onde hajam flores perfumadas pra repousar a alma.


Colaboração João Rios Mendes

terça-feira, 12 de abril de 2016

Não tem mais

 “Quem é ?”
“Um cara que conheci no Hotel.”
“Por que tá sorrindo pra ele?”
“Sou muito bonita pra fazer cara feia.”
“ Vou sentar a mão na sua cara, deixo ela feia num instantinho.”
“Ara, Marcos, vá tecer essas suas ameaças de hominho em outro lugar que comigo elas não funcionam. Falta de respeito falar assim comigo.“
Ela me olhou com frieza quando disse isso. Os olhos marrons sempre tão doces e brilhantes fizeram-se opacos feito céu de chuva. Ficou triste e eu soube na hora que não devia falar assim. Mas ela também não era fácil. Vi de longe o sujeito secando ela que ao invés de fechar a cara como mulher de respeito deve fazer sorriu e ainda acenou... Veja se tem cabimento, ficar acenando pra homem na rua.
 Conheceu no hotel, esse emprego dela só serve pra afastar ela de mim. Passa o dia arrumando a cama dos outros. Ao invés de me ouvir a noite quando chego cansado do trabalho e quero conversar, ela tem mil histórias pra contar do hotel. Ficasse em casa teria casa limpa e ouvidos para me receber ao invés de falatório.
E Por Deus como fala essa mulher! Fala de várias coisas ao mesmo tempo, fala dela e dos outros, tem opiniões para o que conhece e para o que adivinha. Me amola contando suas histórias quando quero ver o futebol, dá palpite sobre o que devo fazer quando estou tentando consertar alguma coisa, comenta sobre cada uma das notícias que passa na TV... Se palavras fossem águas, Amélia seria uma cachoeira.
E no dia em que a ameacei, Amélia calou. Foi até em casa sem dizer uma palavra. Agora, verdade seja dita, se ela falando incomodava, em silêncio, Amélia doía.
Naquele dia senti o coração ferido pela lança do seu silêncio. Ferido, não encontrei as flores vigorosas. O sol se escondeu atrás de uma nuvem. Seu silêncio me mostrou as trevas.
Não importa se é aurora, dia ou noite, o semblante fechado de Amélia é igual coroa de espinhos dessas flores murchas da rua.
Quando Amélia voltar a falar comigo, se voltar, direi que sua voz me dá a coragem da estrela que se joga do firmamento em direção ao chão duro da terra; em sua voz encontro a força das ondas do mar; e a voracidade do fogo que destrói sem piedade.
Desde criança vi as estrelas caindo... Estrelas cadentes. Certo poeta diria que essas estrelas são as luzes dos seus olhos; desde sempre as ondas do mar vão e vem, balançam pra lá e pra cá. O mesmo poeta diria que o balanço das ondas se parece com o balanço da sua saia. Imagino você caminhando e seus quadris valsando aquela sua saia azul barrada de desenhos brancos... Tão linda quanto o balanço do mar; tudo isso é aceso por uma chama, a chama da fogueira de São João. O tal poeta diria que essa chama é o que me dá vida para ver a luz dos seus olhos na estrela cadente, a chama é o que me leva a ver o balanço dos seus quadris e sua saia brincando ao vento.
São João passou, a fogueira apagou-se. E agora, como ver a estrela que cai, o balanço do mar se a chama apagou? E agora...?

Sem seu sorriso, não tem mais abraços, não tem mais chamego, não tem mais chave de coxa... Não tem mais.

Colaboração: João Rios Mendes

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Louca



























Chovia forte. Uma água rubra, sanguínea. Ajoelhada na varanda olhava a chuva tingir o mundo a minha volta. Duas aves decapitadas se protegiam da chuva na mesma varanda e de seus pescoços vertia uma substância negra e espessa. Não senti nojo, só compaixão.
Abri os olhos e pelos clarões da tv ligada vi esboços de móveis. Sombras que se agigantavam na parede. Virei na cama e olhei o relógio. Era madrugada. Não poderia levantar ainda. Então procurei deixar o corpo imóvel, fechar os olhos, prestar atenção na respiração, acalmar, descansar.... Não consegui. Os pensamentos, inúteis, espaçosos, iam tomando conta de tudo.
Levantei. Fui ao banheiro urinar e chorar. Às vezes funcionava e trazia o sono de novo.
“Nádia, o que aconteceu? ”
Droga! Não havia trancado a porta do banheiro. Agora teria que explicar para ele por que estava chorando ou não diria nada e colocava mais uma conta no nosso rosário de ressentimentos. Não havia mais espontaneidade entre nós para simplesmente dizer que eram os pássaros, que é muito triste não ter cabeça, que quando uma parte do corpo falta é como se a gente inteira faltasse também, ele ia achar que eu era louca. Fiquei quieta e fiz um movimento com as mãos como a pedir que ele fosse embora.
“Louca. ” Ele disse com olhos raivosos e voltou para a cama. Talvez ele estivesse certo. Na família havia tantos loucos, talvez eu fosse mais uma.
Uma irmã da minha vó no interior de Minas, cada vez que brigava com o marido vestia todas as roupas que tinha e fugia a pé pelo cafezal. Não levava mala para ninguém perceber que ela fugia. Nunca conseguiu fugir como queria, e com a repetição das tentativas todos que a viam passar obesa por causa de camadas infindáveis de vestidos e ceroulas já sabiam que ela estava a fugir. Avisavam o marido que ia buscá-la a cavalo. Sua loucura era uma esperança ilógica de que não notassem o volume das vestes, um dia cansou-se do plano repetidamente falido e fugiu nua em uma madrugada insone. Foram lhe encontrar longe. A pele do corpo ferida pelos galhos dos pés de café. Nunca mais foi embora depois desse dia. Ficou para sempre com o olhar débil, fixo em nada, silente. Fugiu para dentro.
Outro parente distante que não consigo lembrar o lugar na árvore genealógica morreu de tristeza depois de um amor findo. A moça que ele amava se casou com outro. No dia do casamento dela ele se deitou de bruços em sua cama. A cabeça mergulhada nos braços grandes de homem. Não se moveu mais. Nem um músculo, minha vó contava. Depois de uma semana imóvel, o corpo que fora definhando pela fome, sede e ausência de movimento, morreu.
Uma tia, irmã da minha mãe, jurava de pés juntos que o marido morto a visitava para noites intensas de sexo. Que o sexo mediúnico era ainda melhor do que o amor de outrora, quando questões fisiológicas comprometiam o desempenho.
Uma tia avó, acordou em uma manhã ensolarada de domingo, pegou uma garrafa de álcool, despejou sobre a cabeça de longos cabelos proibidos de cortar pela religião e ateou fogo. Estava na sacada do sobrado em que morava. Contaram depois que ela caiu de lá. A imagem que o relato da morte dela criou ficou guardada em algum canto dentro de mim. Consigo ver o voo do corpo em chamas, os longos cabelos iluminados pelo fogo, feito a cauda de um cometa. Ela deve ter gritado de dor. A imagem que ficou em mim é silenciosa. Fazia pouco tempo que ela tinha perdido o marido e o filho único em um acidente de carro. Não houve fé que apaziguasse a dor.
Examinei meus olhos no espelho do banheiro. Não eram olhos de louca. Fui a cozinha, bebi um copo de água gelada e voltei para o quarto. Tentei deitar bem devagar para não acordar o Mauro. Ele acordou. Estendeu os braços na minha direção feito convite. Deitei no abraço dele e fiquei esperando adormecer ou amanhecer... o que viesse primeiro. 

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A melhor maneira de prendê-la é deixá-la livre

"Pintou as unhas de preto de novo, Amélia? ”
“Foi”
“Não gosto desses esmaltes escuros que você põe na unha...”
“Uai, quando for a manicure pintar suas unhas, Marcos, manda ela passar renda, é bem clarinho. Tu  vai gostar”
Ele fez aquela cara quando eu disse isso. É uma cara que mistura desapontamento com raiva. Ele vive fazendo essa cara.  “ Olha sua roupa!”, “Pára de rir alto “, “Para que tanto batom? ” “Precisa andar rebolando? ” “Precisa dar tanta atenção pra ele?”. Fala um absurdo e faz a cara. Nem olho mais, prefiro ver a cara dele quando ele me namora, aí é uma cara linda de bonita. Um olhar de quem está encantado, de quem chegou ao céu e espera a porta se abrir.
Às vezes fico triste com as cobranças dele. Parece que ele quer amassar minha alma pra caber num molde, e a única coisa que quero que ele amasse é minha carne. Nádegas bem amassadas por suas mãos graúdas, ventre amassado pelo peso do seu corpo. Esse tipo de amasso bem apertado, bem quisto, bem vindo.  Eu sei que poderia facilitar as coisas. Usar roupa “decente”, pensar mais nas coisas que ele gosta, ser menos expansiva, ser menos espontânea, menos independente, menos eu, menos livre... Mais dele.
Uma vez um amigo fotógrafo disse que na fotografia o menos é mais. Pra essa arte pode até ser. Mas pra arte de amar? Gente é diferente. Como querer que alguém seja menos, se já se nasce cheio de curiosidades pra um mundo de coisas. A arte da vida não se parece com a arte fotográfica.
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 Fotografia é estática, é um momento congelado que não existe mais, não pode ser repetido. Amélia nem de longe é estática. É vibrante, quente, tem desejos e vontade própria. É vida em movimento.
Fui criado sob os mimos de várias mulheres. Mamãe, vovó, irmãs, tias e primas formavam o meu harém. Ali eu era rei. Roupa engomada, comida na mesa e barra da saia no tamanho certinho
Agora vem Amélia e diz que vai me botar nos trilhos. Não pede permissão pra sair, ri alto e fala com estranhos na maior intimidade. Ainda zomba de mim se reclamo do seu comportamento.
Reconheço que estou preso ao passado. Ela vive nessa época da mulher se libertando. Sou doido para ter um filho com Amélia, mas ela usa anticoncepcional. Dou de tudo pra ela, do bom e do melhor. Amélia é tinhosa, levanta cedo e vai trabalhar. Não adianta eu me roer de ciúmes. Bota o avental na bolsa, monta na bicicleta e sai pra arrumar os quartos no hotel Nacional.
Ela é bicho solto, nos tempos de escola foi representante da turma, implicava com a música alta dos vizinhos, se metia nas confusões da família.

Não existe na terra mulher mais cheirosa, mais dengosa, mais mimosa que Amélia quando sai do banho enrolada na toalha e me enlaça em seus braços.
Hoje a noite ela vai repetir o de sempre. Ao voltar pro nosso ninho vai me encher de carinho. Sentar no meu colo e contar o seu dia. Nesta hora sou rei, sou gigante sou seu amante.
Pede pra eu deixar de ciúmes bestas, que ela é só minha, só deita comigo.

Começo a desconfiar que a melhor maneira de prendê-la é deixá-la livre.

Colaboração João Rios Mendes

sábado, 19 de março de 2016

A mulher da minha vida


“Vai sair de casa com esse umbigo de fora?
“É”
“Porque?”
“Só tenho ele, se tivesse outro saía com  outro pra te agradar.”
“Debochada. Vai botar outra blusa, anda.”
“Iludido.”
“Iludido?”
“É, tem a ilusão que pode mandar em mim, coitado ”
Fiz cara feia, em vão. Ela nem me olhou enquanto saía com o umbigo de fora. “Mulherzinha atrevida...”, murmurei entre dentes, com medo de que ela ouvisse.  Se ela ouvisse, podia se magoar. Se ficasse magoada a noite eu não teria o corpo dela aninhado em meu peito. Não teria cheiro bom do seu  cabelo agradando meu olfato. Nem calor de pele macia pesando sobre meu corpo. O jeito era engolir a raiva e esperar pelo amor que viria depois.
Amélia tem o talento de me causar emoções intensas e avessas, sentia quase ódio para em seguida encher o peito de ternura. Bastava a lembrança dos olhos marrons de cílios compridos para transformar fúria em desejo.  Alquimia capaz de transmutar qualquer sentimento desfavorável em tesão ou afeto, coisas mais valiosas que ouro em pó. Se ela não fosse tão cheia de si, tão egoísta, tão sorridente, tão debochada, desbocada, desnuda... livre... seria a mulher perfeita. Já teria enfiado uma aliança no dedo dela.
Mas Amélia não estava interessada em aliança ou roupa que lhe tapasse o umbigo.  Amélia não se parecia com a 'mulher de verdade'.
Não sabia passar uma camisa, sua comida era  um desastre, qualquer cômodo que ocupasse por mais de uma hora ficaria bagunçado, era absolutamente impossível fazer com que ela estendesse sua toalha úmida depois do banho ao invés de deixá-la embolada no chão ou em cima da cama.
Amélia não era a mulher mais bonita do bairro, mas era a mulher da minha vida. Amigo leitor, você já saboreou o beijo 'da mulher da sua vida'? Se você acha que esta mulher tem apenas pernas torneadas, bunda arrebitada ou cintura de violão, esqueça, e passe a vida sem a mulher da sua vida.
A mulher da nossa vida não é apenas mais um rabo de saia. Seu olhar se distingue na multidão, seu hálito é o mais quente, seu sussurro é como uma tempestade que sem pedir licença, desrespeita as barreiras, invade nosso corpo e causa estremiços na corrente sanguínea, hemácias, veias e orifícios.
Amélia era agitada, elétrica, indomável. A ponta da minha língua em seu umbigo a deixava tal qual um vulcão que aos poucos vai se tornando indomável. Foi com esse e outros truques baixos que aprendi a sossegar sua fúria.
Por todas essas sensações eu estava preso a Amélia. Confesso, eu não tinha forças para me arrancar dos seus braços, dos seus abraços. Mão me pergunte 'o que ela tem'. Não tenho resposta, e no dia que eu responder eu a terei decifrado. Nesse dia eu a deixarei, pois o jogo terá chegado ao final.
Você consegue decifrar 'a mulher da sua vida'?
Se você estiver buscando neste texto uma resposta, lamento desapontá-lo, não tenho a receita. Mas tenho uma explicação, e ela só serve para mim porque Amélia é única... É a única mulher da minha vida.

Colaboração: João Rios Mendes

domingo, 28 de fevereiro de 2016

A MAGRINHA

Era magrinha. Tinha uns pés grandes de dedos esparramados e uns olhos graúdos e redondos. Passava sempre sozinha na frente da casa dele voltando da escola. Por vezes ela olhava para ele que a observava. Nesses dias ele sorria mais. As brincadeiras eram mais inventivas. Ele nunca soube o nome dela porque nunca falou com ela. Um dia ela deixou de passar em frente a casa dele. A ausência da magrinha olhuda foi sua primeira aflição de amor.
Os sonhos que tecia nas horas em que pensava nela enquanto esperava o fim da manhã que traria os pés esparramados nas chinelas de dedo, deram lugar a uma sensação de lacuna que o acompanhou por muitos anos. Nunca ter trocado mais do que alguns olhares, fez da magrinha a mulher perfeita. Não saber como ela era além da visão fugidia de sua passagem a ampliou para o tamanho da imaginação dele.  
Na primeira noite que chegou em casa do trabalho depois da separação, pensou que se tivesse se casado com a magrinha ela não teria ido embora. A magrinha era compreensível, entenderia suas grosserias, perdoaria as infidelidades e cuidaria de suas ressacas com café e cafuné.
Mas Natália não era a magrinha. Ela era a mulher real. A que ouviu cada uma das infindáveis críticas, que aguentou os olhares insatisfeitos, as noites de fastio e indiferença. Natália era feita de carne, ossos, desejos insatisfeitos e cansaço.
Natália tinha nome e história, e enquanto ele se entorpecia com a aguardente barata que lhe aquecia a garganta lembrava dessa história. Lembrou o contraste do cabelo negro com o tecido amarelo do vestido que ela usava quando ele a viu pela primeira vez, o cheiro doce, o sorriso amplo... Tão bonita. Quanto mais lembrava, mais doía.
Doía o vazio da casa.
Anestesiou os sentidos gole a gole.
Ao despertar, com gosto amargo na boca e o coração despedaçado, saiu para comprar um remédio que lhe que acalmasse o fígado. Cambaleante, chegou à farmácia. Pediu o bálsamo e de novo se lembrou da magrinha.
Não voltou mais em casa. Dali mesmo pegou o primeiro ônibus de volta à rua onde fora feliz vendo os passos da magrinha. De novo seus olhos brilharam ao vê-la desfilando rua acima. Continuava linda segurando na mão direita uma linda garotinha que a chamava de mãe.  A mão esquerda era segura pelo marido sorridente e carinhoso.
Doía o vazio do coração.

Anestesiou os sentidos gole a gole. 


Colaboração de João Rios Mendes

sábado, 13 de fevereiro de 2016

ESCOLHA

Era muito cedo, por volta das seis da manhã. Fazia pouco mais de uns 15 minutos que ela havia se deitado para dormir. Dormiria como gostava, depois de passar a madrugada desenhando e bebendo chá. O colchão no chão era o lugar escolhido para o sono no apartamento alugado para fazer radioterapia, tão longe de casa, tão perto do hospital.  Na cama ao lado dormia a irmã que dera uma pausa na própria vida para fazer companhia e cozinhar para ela nos dias de enjoo, quando preparar a comida funcionava como um gatilho para sessões intermináveis e debilitantes de vômito.
Ainda não havia dormido quando a irmã na cama se mexeu, perguntou se ela estava acordada em um sussurro e contou o pesadelo que acabara de ter.
“ Angela, sonhei com minha ex cunhada, lembra dela?”
“A que era pedagoga ou a gorda?”
“A gorda, ela estava com um objeto cortante na mão e pedia para eu escolher se queria que me cortasse fora a língua ou o clitóris... Deu uma agonia não sabia qual escolher...”
“Eu escolheria cortar a língua, eu adoro comer e falar, mas gosto mais ainda de gozar. ”
A irmã riu com a escolha rápida e certeira do clitóris. Ela também riu, achava tão gostoso fazer a irmã dar risada. A irmã nem sempre tinha o riso fácil, mas quando ela ria era tão bom.  Virava uma palhaça perto dela.
Hoje, enquanto olhou a imagem do corpo nu no espelho do banheiro, lembrou se do sonho da hermana. Impossível não perceber a própria tragédia. O côncavo com a cicatriz onde antes havia um seio, a apatia sexual onde antes ardiam desejos. Ela desviou o olhar do corpo para o cabelo crescente enquanto dizia para si mesma “Foca nos cachos, Bonita, que você não tem vocação pra tristeza mesmo”.
Não alimentava medos e tristezas em demasia. Fugia.
Escondido em alguma gaveta da alma deixava aquilo que machucava mais, de vez em quando a gaveta enchia e ela se permitia mergulhos fugazes em um lago frio que tinha dentro de si.   Depositava as dores no fundo desse lugar e voltava encharcada de tinta, pronta para fugir mais.
Era fácil e agradável fugir. Tinha tantas coisas boas, filhos, alunos, rabiscos, leituras, risos, dança, karatê... Para quê mesmo encarar as sombras que haviam? No fim das contas acreditava que a fuga era o melhor a ser feito. Consolava-se com a ideia paradoxal de que é preciso coragem para se assumir tão covarde.
Sabia que sempre havia a possibilidade de não poder fugir mais.  O abismo no final da corrida.  E aí, seria salto ou olhos nos olhos da dor? Não fazia ideia. Nem toda escolha é tão fácil quanto língua ou clitóris. Pensar nessas coisas colocavam um frio no estômago, o hálito gélido de todos os medos.

Mas enquanto havia chão sob seus pés para correr ela ia seguir. Saiu do banho, ocultou a nudez mutilada, vestiu a máscara do riso, despiu o coração dos medos e se pôs a correr...

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Insanidade




“Perdoa ele...”

Essas duas palavras ainda ecoam agudas, cortantes.
Quando as ouviu dos lábios do seu pai era criança. Não sabia traduzir em palavras o que sentia. Tampouco sabia nomear o ódio e a tristeza insana que sujava tudo dentro dela. Não soube gritar como sentiu vontade que não o perdoaria porque as coisas que ele fez são imperdoáveis. E o grito que ela desejou deixar vazar naquele dia nunca saiu. Ficou preso. Coisa entalada na garganta da alma.
 
Por muito tempo ela tentou lidar. Houve o tempo da inocência, o tempo da esquiva, o tempo da repulsa, o tempo do medo e houve o tempo do ódio.
Anos de ódio mudo. Ódio dele. Ódio de Deus. Ódio de si mesma.
Com o tempo a apatia substituiu o ódio. Não era o perdão sugerido. Era joelho quebrado, rendição. Quando ouviu a debilitante sugestão de perdão não teve como avaliar que a insanidade não era dela. Tudo que alcançou foi o entendimento que não importava a violência sofrida. Não importava o medo e o nojo que sentia. Ela não importava.
 
Não saberia precisar o instante em que essa percepção errônea foi descartada. Talvez não tenha acontecido em um único instante. Deve ter sido fruto de construção lenta. Fato é que se deu. Hoje ela sabe o lugar de cada acontecimento sujo. Conhece os erros de seus pais, a omissão doentia; a ausência de proteção, defesa e ouvidos; a cumplicidade com o estuprador.
 
O que ela não sabe ainda é como agir. Segue vivendo seu jogo de faz de conta. Tática de sobrevivência. Faz de conta que não foi com ela. Faz de conta que não são faltas tão graves as ações dos seus pais. Faz de conta que não sente. Faz de conta que não importa porque ficou pra trás, faz de conta que essa história não se repete todos os dias em tantas casas...
 
Coisa que não entra nesse jogo é o perdão. Não aconteceu aos 12 anos quando sugerido pela omissa voz paterna, não veio quando o corpo dela adoeceu e não virá na hora da morte do estuprador.  O perdão pra ela é inadmissível. Não cabe no faz de conta e tampouco cabe na alma.
           
 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Lágrimas



De onde estava sentado pôde ver os olhos da mulher tornarem-se repentinamente úmidos. Notou o movimento sutil de sua garganta como se engolisse algo áspero, percebeu que ela apertava com a mão esquerda os dedos da mão direita. Sentiu-se incomodado quando a umidade dos olhos dela cresceu e vazou em grossas lágrimas que percorreram lentas o rosto negro.
Olhou em volta procurando mais alguém entre todas as pessoas que estavam no local que assim como ele houvesse percebido a dor estampada naquele rosto sentado na mesa logo a frente da sua, que fizesse algo que o eximisse de mover-se na direção daquela desconhecida, ou ao menos partilhasse da culpa por omitir-se. Não encontrou.
Aproximou-se dela e lhe estendeu um lenço de papel. Ela olhou-o e aceitou o papel em silêncio. Pressionou o papel sobre as pálpebras deixando-o com manchas escuras de resíduos de maquiagem.
_Você pode ficar aqui comigo?
Os olhos negros brilhantes por causa do choro transformavam a pergunta em súplica, que ele atendeu de pronto sentando-se ao lado dela. Não disseram nada e a ausência de palavras causava um desconforto a ele, angustiava-se por não saber se deveria ou não estabelecer uma conversa, pensava em coisas que gostaria de perguntar-lhe para em seguida pensar na possibilidade de isso a constranger e mantinha-se calado.
A voz dela, limpa e baixa, retirou-lhe da angústia.
_Desculpa pedir pra você ficar comigo...
_Você não pediu. Você me perguntou se eu podia ficar.
Ela sorriu, e o sorriso dela fez com que o peito dele ficasse mais leve desenhando em seu rosto um sorriso também.
_Então desculpa por chorar em público.
_Imagina, nem foi assim um choro. Passava por um cisco no olho fácil.
Dessa vez o rosto inteiro dela se abriu em um riso amplo e ele subitamente – como alguém que de repente recebe dos céus uma revelação – enxergou nos traços dela uma beleza exata, plena.
Ainda com um resto de sorriso na face ela agradeceu.
_Obrigada, eu normalmente sentiria vergonha por ter chorado assim, mas com você dizendo que pareceu um cisco...
_Vergonha? Não precisa se envergonhar isso é algo natural, todas as pessoas que eu conheço certamente iriam verter lágrimas se tivessem que ler sobre física aristotélica _disse pegando um dos livros que estavam em cima da mesa dela _ Eu mesmo sempre vejo gente chorando aqui na biblioteca, por entre as prateleiras, tanto que trago comigo lenços de papel...
Ela dirigiu a ele um olhar incrédulo.
_Isso e o fato de ser alérgico a poeira, sempre que venho aqui acabo precisando de lenços.
_Bem que havia ficado desconfiada dessa sua história de trazer lenços para secar as lágrimas de estranhos na biblioteca.
Novamente ficaram em silêncio, entreolharam-se, e nesse encontro calado de olhos havia uma ternura mútua, secular.