segunda-feira, 11 de abril de 2016

Louca



























Chovia forte. Uma água rubra, sanguínea. Ajoelhada na varanda olhava a chuva tingir o mundo a minha volta. Duas aves decapitadas se protegiam da chuva na mesma varanda e de seus pescoços vertia uma substância negra e espessa. Não senti nojo, só compaixão.
Abri os olhos e pelos clarões da tv ligada vi esboços de móveis. Sombras que se agigantavam na parede. Virei na cama e olhei o relógio. Era madrugada. Não poderia levantar ainda. Então procurei deixar o corpo imóvel, fechar os olhos, prestar atenção na respiração, acalmar, descansar.... Não consegui. Os pensamentos, inúteis, espaçosos, iam tomando conta de tudo.
Levantei. Fui ao banheiro urinar e chorar. Às vezes funcionava e trazia o sono de novo.
“Nádia, o que aconteceu? ”
Droga! Não havia trancado a porta do banheiro. Agora teria que explicar para ele por que estava chorando ou não diria nada e colocava mais uma conta no nosso rosário de ressentimentos. Não havia mais espontaneidade entre nós para simplesmente dizer que eram os pássaros, que é muito triste não ter cabeça, que quando uma parte do corpo falta é como se a gente inteira faltasse também, ele ia achar que eu era louca. Fiquei quieta e fiz um movimento com as mãos como a pedir que ele fosse embora.
“Louca. ” Ele disse com olhos raivosos e voltou para a cama. Talvez ele estivesse certo. Na família havia tantos loucos, talvez eu fosse mais uma.
Uma irmã da minha vó no interior de Minas, cada vez que brigava com o marido vestia todas as roupas que tinha e fugia a pé pelo cafezal. Não levava mala para ninguém perceber que ela fugia. Nunca conseguiu fugir como queria, e com a repetição das tentativas todos que a viam passar obesa por causa de camadas infindáveis de vestidos e ceroulas já sabiam que ela estava a fugir. Avisavam o marido que ia buscá-la a cavalo. Sua loucura era uma esperança ilógica de que não notassem o volume das vestes, um dia cansou-se do plano repetidamente falido e fugiu nua em uma madrugada insone. Foram lhe encontrar longe. A pele do corpo ferida pelos galhos dos pés de café. Nunca mais foi embora depois desse dia. Ficou para sempre com o olhar débil, fixo em nada, silente. Fugiu para dentro.
Outro parente distante que não consigo lembrar o lugar na árvore genealógica morreu de tristeza depois de um amor findo. A moça que ele amava se casou com outro. No dia do casamento dela ele se deitou de bruços em sua cama. A cabeça mergulhada nos braços grandes de homem. Não se moveu mais. Nem um músculo, minha vó contava. Depois de uma semana imóvel, o corpo que fora definhando pela fome, sede e ausência de movimento, morreu.
Uma tia, irmã da minha mãe, jurava de pés juntos que o marido morto a visitava para noites intensas de sexo. Que o sexo mediúnico era ainda melhor do que o amor de outrora, quando questões fisiológicas comprometiam o desempenho.
Uma tia avó, acordou em uma manhã ensolarada de domingo, pegou uma garrafa de álcool, despejou sobre a cabeça de longos cabelos proibidos de cortar pela religião e ateou fogo. Estava na sacada do sobrado em que morava. Contaram depois que ela caiu de lá. A imagem que o relato da morte dela criou ficou guardada em algum canto dentro de mim. Consigo ver o voo do corpo em chamas, os longos cabelos iluminados pelo fogo, feito a cauda de um cometa. Ela deve ter gritado de dor. A imagem que ficou em mim é silenciosa. Fazia pouco tempo que ela tinha perdido o marido e o filho único em um acidente de carro. Não houve fé que apaziguasse a dor.
Examinei meus olhos no espelho do banheiro. Não eram olhos de louca. Fui a cozinha, bebi um copo de água gelada e voltei para o quarto. Tentei deitar bem devagar para não acordar o Mauro. Ele acordou. Estendeu os braços na minha direção feito convite. Deitei no abraço dele e fiquei esperando adormecer ou amanhecer... o que viesse primeiro. 

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