Era muito cedo, por volta das seis da
manhã. Fazia pouco mais de uns 15 minutos que ela havia se deitado para dormir.
Dormiria como gostava, depois de passar a madrugada desenhando e bebendo chá. O
colchão no chão era o lugar escolhido para o sono no apartamento alugado para
fazer radioterapia, tão longe de casa, tão perto do hospital. Na cama ao lado dormia a irmã que dera uma
pausa na própria vida para fazer companhia e cozinhar para ela nos dias de
enjoo, quando preparar a comida funcionava como um gatilho para sessões
intermináveis e debilitantes de vômito.
Ainda não havia dormido quando a irmã
na cama se mexeu, perguntou se ela estava acordada em um sussurro e contou o
pesadelo que acabara de ter.
“ Angela, sonhei com minha ex
cunhada, lembra dela?”
“A que era pedagoga ou a gorda?”
“A gorda, ela estava com um objeto cortante na mão e pedia para eu
escolher se queria que me cortasse fora a língua ou o clitóris... Deu uma
agonia não sabia qual escolher...”
“Eu escolheria cortar a língua, eu
adoro comer e falar, mas gosto mais ainda de gozar. ”
A irmã riu com a escolha rápida e
certeira do clitóris. Ela também riu, achava tão gostoso fazer a irmã dar
risada. A irmã nem sempre tinha o riso fácil, mas quando ela ria era tão bom. Virava uma palhaça perto dela.
Hoje, enquanto olhou a imagem do corpo
nu no espelho do banheiro, lembrou se do sonho da hermana. Impossível não
perceber a própria tragédia. O côncavo com a cicatriz onde antes havia um seio,
a apatia sexual onde antes ardiam desejos. Ela desviou o olhar do corpo para o
cabelo crescente enquanto dizia para si mesma “Foca nos cachos, Bonita, que
você não tem vocação pra tristeza mesmo”.
Não alimentava medos e tristezas em demasia.
Fugia.
Escondido em alguma gaveta da alma
deixava aquilo que machucava mais, de vez em quando a gaveta enchia e ela se
permitia mergulhos fugazes em um lago frio que tinha dentro de si. Depositava as dores no fundo desse lugar e voltava encharcada de tinta, pronta para fugir mais.
Era fácil e agradável fugir. Tinha
tantas coisas boas, filhos, alunos, rabiscos, leituras, risos, dança, karatê...
Para quê mesmo encarar as sombras que haviam? No fim das contas acreditava que
a fuga era o melhor a ser feito. Consolava-se com a ideia paradoxal de que é
preciso coragem para se assumir tão covarde.
Sabia que sempre havia a
possibilidade de não poder fugir mais. O
abismo no final da corrida. E aí, seria
salto ou olhos nos olhos da dor? Não fazia ideia. Nem toda escolha é tão fácil
quanto língua ou clitóris. Pensar nessas coisas colocavam um frio no estômago,
o hálito gélido de todos os medos.
Mas enquanto havia chão sob seus pés
para correr ela ia seguir. Saiu do banho, ocultou a nudez mutilada, vestiu a
máscara do riso, despiu o coração dos medos e se pôs a correr...
Escolhas, escolhas: sol ou lua? Tristeza ou rebeldia? sensatez ou insanidade??? A vida exige sonhos!!
ResponderExcluirA vida é uma senhorinha muito exigente, Hermana Hermosa do meu coração...
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