Contaram
para mim que existia uma gigantesca fábrica de gente e que na linha de montagem
espremiam a matéria prima das pessoas em
moldes rígidos de medo. O problema
desses moldes é que eles deformavam o material humano, tanto que poderiam até
imobilizar a peça inutilizando o seu uso. Uma solução para isso foi envolver as
peças em uma malha de ilusões e desejos feita de mentiras. Funcionou muito bem
essa combinação de medo e mentira, posto que, os moldes rígidos de medo impediam
que a essência humana vertesse (algo absolutamente indesejado devido
a natureza altamente contaminante e instável desse material) e a malha de ilusões
e desejos protegiam a peça das deformações e paralisias que o medo poderia
causar. Tudo muito engenhoso e eficaz. A
mim, no entanto, surpreendeu o fato de conseguirem encaixotar as peças ignorando
o fato de que pessoas não cabem em caixas.
Elas não cabem em caixas porque
sequer cabem dentro dos próprios corpos, grande parte do seu conteúdo emana
universo afora em forma de sentimentos e pensamentos. Isso realmente era um
fator que podia inviabilizar toda a produção, pois os donos da fábrica sabiam
que embora pensamentos e sentimentos fossem feitos de uma matéria invisível,
delicada e evanescente, as peças eram muito sensíveis a eles. Sabiam que pessoas podiam ser transformadas
para sempre a partir de uma emoção ou idéia, a mudança irremediável ocorria
mais intensa e rapidamente quando as peças ficavam expostas a sentimentos e pensamentos
unidos em um único elemento. O mais seguro, concluíram então, seria alcançar um
processo de otimização na produção que extirpasse em definitivo a capacidade de
sentir e pensar.
Até tentaram fazer
isso, mas já nos primeiros testes notaram que ao erradicar por completo tais capacidades as peças ficavam inaptas para
desempenhar as funções básicas que justificavam a fabricação de gente: a capacidade de gerar
riquezas aos seus donos através de infinitas funções secundárias que eram
capazes de desempenhar e a função
primordial de alimentar através de hábitos de consumo todo o sistema de
produção, o que também era uma forma de gerar capital.
Logo os fabricantes entenderam que não seria possível acabar
com toda a capacidade de sentir e pensar das peças, pois, o desempenho das
funções básicas estava na dependência do funcionamento de uma engrenagem cujos
rolamentos que a faziam girar eram compostos por sensações e idéias. A própria malha de desejo assim como os moldes
de medo, tão úteis à produção de gente,
também eram feitos de emoções. Por isso para a segurança e lucratividade da
fábrica fazia-se necessário a utilização
de métodos eficientes para controlar e direcionar os
sentimentos e os pensamentos das peças ao encontro do melhor desempenho de suas
funções.
Para sanar o efeito
indesejável que a capacidade de pensar e sentir poderia gerar nas pessoas, os
fabricantes desenvolveram alguns aparelhos para exercer o controle e direcionamento
dessas faculdades. Eram aparelhos grandes e complexos interligados em um sistema, trabalhando
constantemente, fazendo com que alcançassem seus objetivos na quase totalidade das peças.
As pessoas enquanto iam sendo produzidas eram expostas a
esses aparelhos. Havia um, ao qual elas eram enviadas para lá ainda pequenas
durante muitas horas do seu dia no decorrer dos anos todos que levava para
concluir o processo de produção. Esse aparelho era formado por prédios
espalhados por todos os lugares. Dentro desses prédios as peças em formação
eram armazenadas em salas de controle e
construção de pensamento, onde pessoas que já haviam saído da fabrica exerciam
a função de direcionar o pensamento das pecinhas. Esse aparelho servia ainda
para formatar o pensamento com conhecimentos úteis ao desempenho de diversas
funções, o que habilitava a peça para o seu posterior uso.
Um outro aparelho, exercia controle através da fixação de crenças
diversas que, basicamente, serviam para cristalizar
nas pessoas uma idéia de medo e punição eterna causadas por poderosos entes
invisíveis, e segregar as peças em grupos. O mecanismo desse aparelho a medida que construía o entendimento que o seu
grupo era melhor e que podiam contar com ajuda desses seres invisíveis desde
que obedecessem suas ordens iria desenvolvendo justificativas que validavam ações
contrárias a empatia presente na matéria prima das peças, isso evitava o
surgimento de idéias e sentimentos perigosos de igualdade de valores e identificação afetiva entre as
peças.
Outro ainda, extremamente eficaz, era formado por uma grande
quantidade de máquinas que acompanhavam as pessoas o tempo todo, eles serviam para distrair, estimular o
consumo e transmitir as informações manipuladas que seriam utilizadas na
construção e manutenção da rede de ilusões e das molduras de medo.
Esse aparelho como se
multiplicava em muitos e contribuía em diversos aspectos do processo produtivo
da fábrica foi se tornando cada vez mais presente e poderoso, tanto que em dado
momento toda a produção da fábrica dependia do funcionamento das maquinas que o
constituíam. E, foi por causa dessa dependência que a fabrica entrou em colapso
e encerrou suas atividades.
Eu que nasci em um tempo outro, um tempo onde fábricas de
gente não existem mais, ouvia na infância, muito atenta, minha avó contar a
história de como foi que as pessoas deixaram de ser fabricadas e conquistaram o
direito de construírem suas vidas plenas de liberdade e afeto. Muitas foram às
vezes em que ela enquanto acariciava meu cabelo com suas mãos enrugadas e
mornas me falou sobre a fabricação de gente.
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