terça-feira, 18 de outubro de 2016

Lacunas

“Ela também”
Ouvi minha mãe dizendo àquela desconhecida da loja. A mulher deitou em mim uns olhos de pena. Só queria me esconder. Era como se a vergonha sentida pelo que acontecia estivesse sendo amplificada. A mulher da loja antes de sairmos me presenteou com uma boneca. O corpo de lã colorida, a cabeça , as mãos e os pés de porcelana.

Segurei  a boneca sem agradecer, os olhos fixos nos meus pés. Pegamos o ônibus. Em casa, que não era nossa casa, mas a casa dele, peguei um martelo e bati com força na cabeça, mãos e pés da boneca até que virassem pó. Fiquei olhando a poeira branca. Desejei que fosse ele. Desejei que fosse eu.
Olhando pra trás e pra dentro, agora, do ponto onde me encontro, é perturbador perceber como minha memória é só um amontoado de lacunas que se sucedem uma após a outra com parcos fragmentos nítidos de lembrança. A poeira branca da porcelana moída pela violência das marteladas é um desses fragmentos. O branco da hóstia esmagada na sola do meu sapato também.
Lembro da homilia do padre naquela missa. Lembro dele afirmando que Deus ama a todos, e que ele tem um plano para nossas vidas, que os sofrimentos são coisas que devemos aceitar. Que embora não pareça ele está cuidando de nós. Isso não trouxe consolo. Quando a missa terminasse iríamos almoçar na casa dele. Mesmo depois de todos saberem o que ele fazia. Ele iria se esfregar em mim, tocar meu corpo, sussurrar no meu ouvido que eu era sua puta, que não adiantava olhar feio, nem contar pra ninguém, que ninguém ligava por que eu era só uma puta.
Quando o ministro da eucaristia depositou a hóstia nas minhas mãos não a coloquei na boca. Não queria comungar de um deus omisso. De volta ao meu lugar, em pé, no fundo da igreja lotada joguei a massa de trigo que os crentes chamam de deus no chão e a esmaguei com o pé, enquanto falava em silêncio com toda a força do meu coração de criança:
“Não gosto de você e você não gosta de mim, você não cuida de mim. Não cuida das pessoas que sofrem.  Você é só um deus mentiroso e estou cansada das suas mentiras.”
Não sei situar no tempo se o pedido do meu pai para eu perdoar ele, foi antes ou depois  de eu esmagar deus com a sola do meu sapato. Lembro que era um dia frio, estávamos andando.
“Eu tenho ódio do seu pai... Não quero mais ir na casa dele.”
“Perdoa ele.”
Ele não perguntou os motivos que me levavam a sentir ódio, nem respeitou minha vontade de não ir mais a casa do vô. Meu pai era tão omisso quanto deus.
Na véspera do dia dos pais desse ano, trabalhando na gincana da escola via os pais brincando com seus filhos. As risadas fartas, os olhares amorosos. Tentei lembrar de alguma brincadeira com meu pai, algum instante, algum riso... Lacunas.
Um vazio espalhado por dentro. Nem raiva, nem pesar, nem esperança. Só vazio maciço, agigantado.


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